Preâmbulo
* Trecho inicial
Quando será consertado o mundo do avesso?
— Franz Kafka a Milena Jesenká Pollak
Como uma época se torna uma Era, e dela nasce um novo Éon?
Ou ainda.
Como uma revolta se transforma em uma insurreição, e esta em uma revolução?
Há séculos que as gerações se confrontam com essa questão irresoluta e sempre inevitável. Pode-se dizer que revolucionários nascem no momento que os indivíduos se colocam aquela questão e começam, junto com outros, a elaborar respostas. É uma batalha mundana e espiritual que já deu vida a experimentações audazes e aventuras estupendas, as quais — é verdade — em sua grande maioria foram derrotadas. Ademais, muitas lutas terminaram por causa do abandono daquele que questiona. A astúcia da História sempre leva vantagem sobre o escândalo da verdade. Por isso, Franz Kafka dizia que, para os movimentos espirituais revolucionários, os quais são sempre movimentos contra a História, é como se nada tivesse acontecido ainda. Não obstante, ou talvez por isso mesmo, aquela questão sempre ressurge das ruínas do tempo, intacta.
Chegados ao fim de uma civilização — a nossa, qual outra poderia ser? —, a interrogação é carregada de urgência, veste um caráter inadiável, fica mais bem contextualizada, torna-se a reflexão silenciosa de uma inquietude sempre mais difundida. Afinal, são perguntas simples, repetidas muitas vezes, de lugares distantes entre si. Como pôr fim a um domínio que não quer terminar? Como acabar com a miséria de uma existência cujo significado nos foge por todos os lados? Como encerrar este presente, cuja planta arquitetônica parece a de uma cela capaz de conter uma população inteira? Como extinguir uma catástrofe que já não pode avançar, pois está em toda parte e começou a escavar sob os pés do Anjo da história? Enfim, e sobretudo: como mover o eixo do mundo, orientando-o sobre a abscissa da felicidade? A resposta é inseparável da pergunta, a qual deve permanecer imóvel, porém aberta ao uso de quem a sinta aflorar dentro de si. A verdadeira doutrina consiste somente em perguntas, afirmava o historiador da Cabala. Então, a resposta se inscreve na existência, quando esta coincide integralmente com a pergunta.
Nestes tempos, todavia, parece que é o próprio mundo, já exausto, a propor-nos o questionamento antes de abandonar a cena. Exausto porque consumou todas as suas possibilidades — de agora em diante, só o impossível conta. A História, quando se aproxima do fim, torna-se imensamente pesada de suportar, e já tem algum tempo que o seu progredir significa somente a intensificação da sua catástrofe. A verdade, sepultada sob enorme quantidade de destroços do progresso, é que nunca existiu um mundo como o do nosso presente, recluso no quadrinômio Ocidente-Modernidade-Democracia-Capitalismo, e sim uma Terra que jamais parou de se modificar em uma multiplicidade de mundos. Mundos que aparecem unificados na separação e hierarquização da cibernética, do capital, da metafísica, do espetáculo.
Não faz muito tempo, havia a possibilidade, ainda que subalterna, de nomear a pluralidade dos mundos. Mas o mundo atual, que se representa como uma unidade de sentido singular e única, eliminou do regime discursivo dominante até mesmo as modernas definições políticas de segundo, terceiro ou quarto mundo — exatamente como fez com as classes: um só mundo, aquele do capital, e uma só classe, a burguesia planetária. Ora, aquele mundo único, aquela concreta abstração que nega a existência a todos os outros mundos — em uma palavra, “a civilização” —, é precisamente o que está ruindo sob o peso do seu catastrófico triunfo. Converter este colapso, esta catástrofe triunfal, esta impossibilidade, na redenção de todos os mundos é a aposta dos revolucionários. Vencer aquele único mundo antes que colapse ruinosamente sobre a humanidade, no fundo, seria a única maneira racional de confrontar a vontade frenética de apocalipse do Ocidente.
Os revolucionários são os militantes dos fins dos tempos, operam dentro dessa temporalidade para a realização de uma felicidade profana. Mas é necessário ter consciência de que a exaustão das possiblidades deste mundo também significa o esgotamento das ações políticas que viviam nele. Uma identidade política que, como este mundo, tenha exaurido todas as suas possibilidades deve ser destituída, ou então continuará a existir como um semimorto, como um zumbi. Assim, para agarrar o impossível, parece que não resta outra alternativa se não modificar aquela forma de vida especial, aquela máscara que foi a militância revolucionária moderna, da qual restam na memória apenas estilhaços, fragmentos, ruínas. Uma experiência sobre a qual falta fazer toda uma ontologia histórica. Por isso mesmo, a atual relação com ela é a de um luto não resolvido. Os K-way neri, que se tornaram uma presença constante em toda manifestação em que acontece alguma coisa, parecem estar ali justamente para recordar esse luto ao resto do cortejo.
Mas, atenção: não se trata de ir contra a militância, cuja história merece todo nosso respeito, e sim adotar a estratégia paulina do “como não” — que os militantes sejam como não militantes. Escreve Giorgio Agamben: “O ‘como não’ é uma deposição sem abdicação. Viver na forma do ‘como não’ significa destituir toda propriedade jurídica e social, sem que esta destituição funde uma nova identidade”. Em primeiro lugar, isso significa liberar quem vive numa forma que o obriga a ser alguém, ou ainda, a viver como se fosse alguma outra coisa, algo que seria mais verdadeiramente presente, porém colocado como um fim exterior. Já para o militante, viver no “como não” significa escolher o encantamento que o quer investido em um dever infinito e em uma entrega absoluta.
Máscara e face não podem mais ser sobrepostos e separados a bel prazer, se não se quer repetir a tragédia dos revolucionários de profissão que Bertold Brecht põe em cena com “A decisão” em 1930; afinal, já sabemos que não há rosto que não seja máscara, decidir a qual ser fiel cabe a cada um. Tanto os militantes do partido quanto o jovem companheiro protagonista daquela peça estavam errados: uns porque estavam cegos pela ideologia e o outro porque era de um sentimentalismo voluntarista. Ainda que aquela época possa ser pensada como uma magnífica tragédia, para nós, a “linha de conduta” não pode mais ter a pretensão de ser reta ou governada por uma série de “disposições” e “medidas”; em vez disso, ela faz uma curva muito peculiar, espiralada, dobra-se em direção ao centro e ao mesmo tempo para fora, sem fim, sem cume como a torre de Tatlin.
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