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A transição histórica da Segunda Guerra Mundial para as lutas anticoloniais e para a Guerra Fria provocou uma mudança fundamental na maneira pela qual Estados Unidos e os Aliados passaram a travar a guerra. Dois novos modelos de guerra surgiram no final dos anos 1940 e 1950, e começaram a reformular a estratégia militar norte-americana: a guerra nuclear e a guerra não convencional. Apesar de estarem em polos opostos quanto aos seus respectivos escopos, ambas foram em grande parte desenvolvidas no centro de controle de estratégia militar dos EUA pela RAND Corporation[1]. Formada em 1948 como resultado da ala de pesquisa da Força Aérea dos EUA, a RAND trabalhou proximamente ao Pentágono e às agências de inteligência para elaborar esses novos paradigmas de guerra.[2]
Num extremo do espectro, os Estados Unidos desenvolveram capacidade e estratégia nucleares, assim como fizeram alguns dos Aliados. A partir disso, emergiu um campo de planejamento militar, que reuniu da teoria dos jogos às análises sistêmicas, bem como produziu uma lógica de guerra em total desacordo para com as estratégias de guerra convencional. Os estrategistas de armamento nuclear inventaram teorias de “retaliação maciça”[3] e de “destruição mútua assegurada”[4] – paradigmas militares drasticamente diferentes das formas anteriores de batalha e muito mais grandiosos, em escala, do que a guerra convencional. A estratégia nuclear norte-americana focou na rivalidade com a União Soviética e conjecturou um conflito global de proporções extraordinárias.
No outro extremo do espectro, um modelo muito diferente emergiu, situado especialmente nas colônias – uma abordagem de operação especial, muito mais cirúrgica, que mirava em pequenas insurgências revolucionárias, as quais eram, em sua maioria, revoltas comunistas. Diversificadamente chamada de guerra “não convencional,” “antiguerrilha” ou “contraguerrilha,” “irregular,” “sublimitada,” “contrarrevolucionária” ou simplesmente “moderna”, esse crescente domínio da estratégia militar prosperou durante as guerras francesas na Indochina e na Argélia, nas guerras britânicas na Malásia e na Palestina, e na guerra norte-americana no Vietnã. Tal domínio também foi fomentado pela RAND Corporation, que foi uma das primeiras a ver o potencial daquilo que o comandante francês Roger Trinquier chamou de “guerra moderna” ou de “versão/perspectiva francesa de contrainsurgência.” Ela forneceu, nas palavras de um de seus principais estudiosos, o historiador Peter Paret, um contrapeso vital "em oposição aos mísseis e à bomba de hidrogênio."[5]
Assim como a estratégia de armas nucleares, o modelo de contrainsurgência surgiu da combinação estratégica entre teoria dos jogos com a teoria dos sistemas. Contudo, diferentemente da estratégia nuclear, que foi primariamente uma resposta à União Soviética, a contrainsurgência se desenvolveu em resposta a outro formidável teórico dos jogos: Mao Tsé-Tung. Em virtude disso, o momento de formação da teoria da contrainsurgência não foi o do confronto nuclear que moldou a Crise dos Mísseis de Cuba, mas a da Guerra Civil Chinesa que levou Mao à vitória em 1949 – especificamente quando Mao transformou as táticas de guerrilha em uma guerra revolucionária que derrubou o regime político. Os métodos e práticas centrais da guerra de contrainsurgência foram aprimorados em resposta às estratégias de Mao e às lutas anticoloniais que se seguiram no sudeste da Ásia, no Oriente Médio e no norte da África, as quais reproduziam o método de Mao.[6] Essas lutas pela independência foram o solo fértil para o desenvolvimento e aperfeiçoamento da guerra não convencional.
Na virada do século XX, quando George W. Bush declarou “Guerra ao Terrorismo”, em seguida ao 11/9, a guerra de contrainsurreição já estava bem desenvolvida e amadurecida.[7] E com a espetacular ascensão do general norte-americano David Petraeus, a teoria da contrainsurgência passou a dominar a estratégia militar dos EUA. Dada a atual geopolítica do século XXI, a guerra moderna substituiu o paradigma militar das guerras em grandes campos de batalha do século passado.
A guerra de contrainsurgência tem sido uma das inovações mais significativas do período pós-Segunda Guerra Mundial, em termos de nossa política contemporânea. Pensando melhor, foi Mao, e não a URSS, o inimigo mais importante e duradouro. Mao foi quem transformou a guerra em política – ou, mais precisamente, quem mostrou a nós todos como a guerra moderna poderia transformar-se em uma forma de governar. Pós-11/9, talvez somente em retrospectiva é que podemos realmente compreender as completas implicações iniciais da teoria da contrainsurgência.
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[1] N.T.: Instituição “think tank” sem fins lucrativos, criada originalmente como Douglas Aircraft Company, que desenvolve pesquisas e análises para o Departamento de Defesa norte-americano. Majoritamente, sua receita é mantida por setores militares do governo norte-americano e tem atuação em mais de 46 países pelo mundo. Cf. https://www.rand.org/.
[2] Ver Fred Kaplan, The Wizards of Armagedon: This Is Their Untold Story (New York: Simon and Schuster, 1983); S. M. Amadae, Rationalizing Capitalist Democracy: The Cold War Origins of Rational Choice Liberalism (Chicago: University of Chicago Press, 2003); Jennifer S. Light, From Warfare to Welfare: Defense Intellectuals and Urban Problems in Cold War America (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2003); e Bruce L. R. Smith, The RAND Corporation: Case Study of a Nonprofit Advisory Corporation (Cambridge: Harvard University Press, 1966).
[3] N.T.: Massive retaliation, também conhecida como “resposta maciça” [massive response] ou “dissuasão maciça” [massive deterrence] é uma doutrina militar e estratégia nuclear na qual um Estado se compromete engaja-se em retaliar com muito mais força em caso de ser atacado.
[4] N.T.: Mutually assured destruction é uma doutrina de estratégia militar em que o uso maciço de armas nucleares por um dos lados iria efetivamente resultar na destruição de ambos, atacante e defensor. É baseada na “teoria da intimidação”, através da qual o desenvolvimento de armas cada vez mais poderosas é essencial para impedir que o inimigo use as mesmas armas. Estratégia inspirada no “Equilíbrio de Nash”, onde ambos os lados estão tentando evitar a pior das consequências, ou seja, a aniquilação nuclear.
[5] Roger Trinquier, Modern Warfare: A French View of Counterinsurgency, trad. Daniel Lee (New York: Frederick A. Praeger, 1964); e Peter Paret, French Revolutionary Warfare from Indochina to Algeria: The Analysis of a Political and Military Doctrine, vol. 6, Princeton Studies in World Politics (New York: Frederick A. Praeger, 1964), p. 5.
[6] Ver Gérard Chaliand, Guerrilla Strategies: An Historical Anthology from the Long March to Afghanistan (Berkeley: University of California Press, 1982), p. 7 (argumenta, fundamentalmente, que Mao foi o teórico que inventou a guerra revolucionária: “A questão é que a guerrilha é uma tática militar destinada a intimidar um adversário, enquanto que a guerra revolucionária é um meio militar pelo qual se derruba um regime político”, e Ann Marlowe, David Galula: His Life and Intellectual Context, SSI Monograph, ago. 2010, p. 27 (http://www.strategicstudiesinstitute.army.mil/pubs/display.cfm?pubID=1016). Segundo a autora, “Mao é crucial para a história da teoria da contrainsurgência” ou, de forma mais simples, “Mao tornou a contrainsurgência teoria.”
[7] Richard Stevenson, “President Makes It Clear: Phrase Is ‘War on Terror,’” New York Times, 4 ago. 2005 (http://www.nytimes.com/2005/08/04/politics/president-makes-it-clear- phrase-is-war-on-terror.html).