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A febre amarela tem sua razão de ser em causas fixas e permanentes, e afirmar o contrário seria negligenciar a gravidade da sua ação recorrente. A matéria-prima das epidemias reside nas condições naturais e históricas da região habitada. Ao final dos 13 anos em que esteve à frente da Junta de Central de Higiene Pública, o emérito higienista Francisco Paula Candido procurou demonstrar como as epidemias de febre amarela, peste e cholera morbus são moléstias infecciosas resultantes da ação recíproca de dois elementos: o gérmen e o miasma.[1] Aqui tem havido miasmas há muito e em circunstâncias acessórias das mais diversas. Os miasmas são a matéria-prima das epidemias e só com a reciprocidade da ação de ambos resultará o fenômeno epidêmico. O gérmen morbífico da febre amarela, ou de qualquer outra epidemia infecciosa, não se desenvolverá para a produção de uma grande epidemia desde que na presença da matéria-prima da epidemia: o miasma. O gérmen é um mero excitador que intervém nas condições sanitárias da cidade. Ele apenas desdobra-se em compostos orgânicos capazes de propagar a respectiva moléstia na condição de existirem em um país, ou mesmo em um indivíduo, as emanações em estado receptível, quer dizer, os miasmas. Explosões epidêmicas contra as quais se alvoroça o governo não existiriam, portanto, caso fosse eliminada a preexistência de miasmas. O Barão de Lavradio, sucessor como presidente da Junta, vale-se dessa estatística mortuária entre os anos de 1869 e 1876 para concluir um de seus relatórios nesses termos: “Estas perturbações progressivas e constantemente aumentadas não podem em minha opinião ser devidas a causas acidentais e passageiras, como sejam as condições meteorológicas e atmosféricas, (...) e sim a causas permanentes, cuja ação se exerce de um modo contínuo”.[2] O mesmo Barão de Lavradio, no livro chamado Esboço Histórico das epidemias que têm grassado na cidade do Rio de Janeiro desde 1830 a 1870, reavalia os tempos idos de 1850 e observa que, se não fossem as calamidades da febre amarela de então,
- não se teria talvez tomado tão cedo a importante medida da remoção dos enterramentos nas igrejas, reclamada desde 1829 pela sociedade de medicina, porque a superstição religiosa, ou antes o fanatismo, e a quebra de mesquinhos interesses teriam ainda achado pretextos para fazê-la adiar; não teríamos por certo uma repartição de saúde embora mal organizada para satisfazer os fins de sua criação, mas que, apesar disso, não deixa de ter prestado bons serviços, quer quanto à higiene pública, quer quanto à polícia sanitária (...). [3]
No capítulo anterior nos aproximamos da hipótese de que foi em função de certa visibilidade do cadáver que o dispositivo médico-higienista, a partir da segunda metade do XIX, estica a narrativa sobre a epidemia de febre amarela do “controle sobre uma nova cultura fúnebre” para aquilo que será a sua maior ambição nas décadas seguintes: a desarticulação dos princípios miasmáticos em seus núcleos potenciais de emissão. Procuramos ali estudar a instância da reflexão sobre a epidemia na prática higienista e sobre a prática higienista. Pouco nos auxiliaria tomar a “consciência de si” da medicina higienista como ponto de partida. Ao contrário, é preciso ter as práticas concretas como pontos de partida, os diferentes acontecimentos, êxitos, as ações oportunas que se pautam por esse suposto algo que é a experiência da epidemia, e a partir daí ver qual história podemos fazer com essas coisas.[4] Seria possível fazer outra história que não a que propusemos: uma história da medicina social no Brasil que não fosse além do projeto inicialmente gestado, revelar quais foram os requisitos e as funções visadas, e definir quais eram os ideais conduzidos pela legislação. Seria possível, paralelamente, estabelecer o saldo entre o previamente idealizado e o que se desdobrou efetivamente procurando os níveis de correspondência entre discursivo e extradiscursivo. Parece-nos, entretanto, que as coisas não seriam tão simples, como se entre relações discursivas e a determinação das práticas políticas se estabelecesse uma sorte de causalidade vertical instantânea.
Optamos então por um descentramento, uma passagem ao exterior em relação à função da ciência, para tentar fazer um tipo de análise estratégica assumindo um ponto de vista que saltasse para fora das relações entre a instituição higienista, seu berço e sua história. Descentramento que teve a ver com a sublimação do “ponto de vista interno da função pelo ponto de vista externo das estratégias e práticas”.[5] Ora, não é possível tudo dizer em qualquer tempo. Ou melhor: embora nem sempre o que falamos se encadeie com o que vemos, há um regime histórico das coisas ditas que é inseparável dos enunciados que ali ganham corpo na medida em que os condiciona. Esse regime de enunciabilidade, ou formação discursiva, é irredutível a estatutos e pretensões de verdade científicas, por isso nosso campo de trabalho não é a ciência médica enquanto tal. Interessa-nos como se distribuem enunciados possíveis em seus espaços históricos de projeção e dispersão. Quando dizemos que nem tudo pode ser dito em qualquer tempo é porque, em uma formação histórica através da qual um enunciado se projeta, pouco importa a intenção que se esconde por trás do que é dito, importa ver como esse enunciado e não outro enunciado manifesta essa realidade (“não há possível nem virtual no domínio dos enunciados; nele tudo é real, e nele toda realidade está manifesta: importa apenas o que foi formulado, ali, em dado momento, e com tais lacunas, tais brancos”).[6] Por que esse recorte de realidade e não outro? Aqui, entre memória e esquecimento, não há nenhuma exterioridade ou duplicação metafísica, no sentido de que caberia redirecionar a questão nos termos: como uma dada formação histórica impõe um repertório de problematizações, ou horizonte de objetivações, que não é fixo ou invariável, mas que sofre rupturas, descontinuidades, quebras epistemológicas? A noção de esquecimento ganhará então a imagem de um espaço branco, ou uma lacuna que não é outra lacuna senão um vazio instaurado, de maneira que o esquecido não é o já ausente nem o registro que se perdeu. O esquecido não é a versão carente de sentido da memória. O esquecimento é capturado e age por vias estratégicas submetido à ordem da memória, sendo necessário, portanto, integrar seu silêncio no movimento que uma narrativa histórica realiza para se firmar. É o que diz Foucault em sua História da loucura: “A história só é possível sobre o fundo de uma ausência de história, no meio desse grande espaço de murmúrios que o silêncio espreita, como sua vocação e sua verdade”.[7]
[1] ARQUIVO NACIONAL. MAÇO IS 4-24 – Série Saúde – Higiene e Saúde Pública – Instituto Oswaldo Cruz, sem paginação.
[2] Cândido Barata Ribeiro, Quais as medidas sanitárias…, 1877, p. 59.
[3] José P. Rego, Esboço Histórico das epidemias que têm grassado na cidade do Rio de Janeiro desde 1830 a 1870 (Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1872), p. 203.
[4] Essa não muito segura tarefa de investigar a experiência da epidemia (inclusive) na prática do dispositivo higienista (já que tanto ou mais viável seria uma história das ideias médicas ou uma história da política interna das instituições de saúde) no mínimo nos reserva do risco de submeter um espaço-tempo às legislações e códigos que ele produz. Porque, se levamos ao pé da letra a legislação sobre inumações, por exemplo, o Código de Posturas da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, promulgado em 28 de janeiro de 1832, já ali se fazia observar a proibição de “enterrarem-se corpos dentro das igrejas, ou nas sacristias, claustros dos conventos, ou quaisquer outros lugares nos recintos dos mesmos”, com multas de “30$ de condenação”, e “oito dias de cadeia” aos coveiros que fizerem as covas (§1º da Seção I: Saúde Pública – Título I: Sobre cemitérios e enterros).
[5] Michel Foucault, Segurança, território, população [1977-78/2004], trad. Eduardo Brandão (São Paulo, Martins Fontes, 2008), p. 158.
[6] Gilles Deleuze, Foucault [1986], trad. Claudia Sant’Anna Martins (São Paulo, Brasiliense, 2005), p. 14.
[7] Michel Foucault, “Folie et déraison (prefácio)” [1961], em Ditos e Escritos I – Problematizações do sujeito, trad. Vera L. A. Ribeiro (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999), p. 156.
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