(parágrafos iniciais)
Uma poética dos subcomuns
— Fred Moten
Hoje, quero contar um breve histórico dos problemas que venho tentando resolver nos últimos dois, três anos. Todos eles se enquadram nesse projeto colaborativo de longo prazo que venho realizando com meu amigo Stefano Harney, que conheço desde a época da faculdade. Um dos desvios que farei tem a ver com a experiência que tive nestes últimos meses lecionando na Universidade da Califórnia em Riverside. Como parte de um esboço dessa trajetória, quero desenhar os começos com um pequeno comentário exegético sobre o poema que Abby acabou de ler e quero, em especial, pensar sobre as coisas — o porquê de eu estar ocupado com as coisas — e ver se consigo descobrir uma maneira de passar da ocupação com as coisas para a preocupação com o nada, ou com a nadidade; além disso, ver o que nadidade e coisidade têm a ver com o que Stefano e eu temos chamado de “subcomuns”. A partir disso, quero pensar como essa nadidade, ou seja, essa não-coisidade ela mesma se manifesta como uma espécie de prática, prática que Denise Ferreira da Silva descreveria como “diferença sem separabilidade”, diferença necessariamente social e estética, sobre a qual podemos começar a pensar como se fosse uma espécie de poética. Posso pegar o poema emprestado?
[Moten pede o poema que Abby leu]
É doido o modo como certas cidades, mesmo que você não more nelas, fazem parte da sua trajetória intelectual. Por um punhado de motivos diferentes, alguns bons e outros ruins, pra mim, Chicago é uma dessas cidades. Tenho família lá, pessoas que empreenderam aquela fuga tardia para o norte vindo do Arkansas nas décadas de 1930 e 40. Junto com essa gente, na mesma onda ou movimento, veio essa música incrível que se ramificou em direções notáveis: blues elétrico, AACM, toda a gama de expressões musicais de Chicago após a Segunda Guerra que tenho certeza que vocês conhecem bem melhor do que eu — eis é a parte boa. A ruim diz respeito ao quanto você sente que tem uma relação com certo tipo de espaço intelectual que só opera por meio de sua exclusão e, ainda assim, a relação existe. Quem mora em Chicago, em especial na parte Sul, sabe do que estou falando. Não é preciso, porém, morar ali para compreender as modalidades específicas da exclusão incorporativa daquele espaço. Penso na presença colonial da Universidade de Chicago e sua regulação — tanto intelectual como jurídica — de todo um outro modo de migração. Trata-se de uma questão sociológica, obviamente, e por isso, mais especificamente, penso em Robert Park, crucial na emergência e no desenvolvimento da sociologia americana. Um de seus interesses primários era a vida social negra, que ele passou a entender como uma espécie de vitalidade patológica. A vizinhança da Universidade de Chicago era seu laboratório. As pessoas negras que ali viviam foram concebidas como objetos de estudo e, nesse sentido, incorporadas pela universidade como algo que poderíamos chamar de objetos (anti)sociológicos encontrados. Sua incorporação pela universidade, no entanto, não militou e ainda não milita contra a sua exclusão dela ou daquilo que a universidade deveria ser e ter. Esta é a forma que a integração assume, onde integração deve ser entendida como o truque da segregação, o seu ardil, quando a própria segregação é entendida, com precisão, como a modalidade em que a alternativa é submetida à regulação e reprodução genocidas. Stefano e eu temos tentado pensar (não tanto sobre, mas sim na) vida social, ou seja, vida social negra, a vida social da alternativa, de outra maneira.
Bill Brown é um professor de inglês da Universidade de Chicago bastante conhecido por seu envolvimento e engajamento com um negócio que ele chama de “teoria das coisas”. É um trabalho que muitas pessoas têm feito. A essas pessoas, recentemente, se juntaram praticantes da “ontologia orientada a objetos”, que pensam o modo como objetos (às vezes confundidas e às vezes mais rigorosamente diferenciadas das coisas) carregam um tipo de conteúdo, talvez mesmo um tipo de animação que a filosofia fundamentada no pressuposto do Homem, do sujeito normalmente se recusa a reconhecer. A ontologia orientada a objetos emerge, em parte, na filosofia heideggeriana, de seu investimento na natureza das coisas que também é uma investigação. Ele estava interessado, por exemplo, no jarro como um tipo particular e especial de coisa, caracterizado pela capacidade de conter. Ele estava ocupado com o que as coisas (feitas pelo homem) podem conter e com o que esse conteúdo pode nos dizer sobre a vida humana, no sentido de que a vida humana é o meio por meio do qual se alcança um entendimento do ser do ser, ou o próprio ser ao qual esse entendimento é dado. A coisidade e o ser estão, portanto, profundamente conectados na obra de Heidegger — e as novas contribuições para a “teoria da coisa” se movem com, por meio e a partir disso.
Há um outro elemento marxiano nisso tudo. Marx tem uma relação diferente com a coisa, que ele considera primariamente sob a rubrica da mercadoria. Sua intenção era desmistificar noções acerca de um suposto conteúdo da mercadoria, uma suposta interioridade, por assim dizer, entendida como valor em si e por si mesmo e não como algo projetado. Tentei falar disso em meu livro Na quebra [In the break]. Ali, tento pensar no investimento de Marx em nos ajudar a não acreditar que as coisas ou os objetos têm um valor que não é o projetado pelas pessoas. O problema com essa formulação, no entanto, e com as variadas contribuições heideggerianas para a teoria das coisas, é que ela tende a ignorar a experiência, assim como o pensamento ou a teorização que é mantida ou contida, dada e dispersada por pessoas que foram igualmente concebidas como coisas e mercadorias.
(parágrafos iniciais)
Hapticalidade nos subcomuns
— Stefano Harney
No texto a seguir, pretendo sugerir que precisamos de uma maneira de pensar sobre como o nosso trabalho está sendo despedaçado e redistribuído, re-montado, através dos nossos corpos, através de corpos, através do espaço e do tempo de forma mais geral. Contra a propaganda das cidades criativas, mas também contra nossas próprias suposições de que nossas subjetividades estão sendo postas para trabalhar, quero usar a gestão operacional contemporânea para apontar para um outro processo. Quero falar sobre uma linha solta, um ritmo de trabalho ilimitado, insistente, porém, linha que deve ser servida, cuidada, conectada para garantir o “rendimento” [throughput]. Não há sujeitos nessa linha, a única coisa inteira nela é ela mesma. Por fim, quero apontar para alguns trabalhos na arte contemporânea que se alimentam de uma tradição crítica quanto a esse tipo de trabalho, tradição que tem produzido ritmos subcomuns contra esse trabalho. Uso o termo “operações negras” de Fred Moten para nomear esses ritmos.
Fanon
Na conclusão do clássico de Frantz Fanon, Les damnés de la terre [Os condenados da terra], algo notável acontece. Ao longo do livro, Fanon nos conduz por sua análise incisiva das diferenças psicológicas, culturais, de classe e nacionalismo entre colonizado e colonizador. Nisso, ele examina o pensamento e a ação revolucionária como nunca antes havia sido feito, retratando vividamente os coveiros do colonialismo. Então, na conclusão, ele se concentra de maneira precisa e repentina na relação dos recém-libertos povos pós-coloniais com o trabalho.
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