Estrangeiros por toda parte 2005
Longe, longe de ti se desenrola a história mundial, a história mundial da tua alma.
— Franz Kafka, Diário, 1922
Começamos sempre nos perguntando quem são aqueles que não são desejados, para em seguida inscrevê-los na lista dos indesejáveis.
Nós lhes pedimos para soletrar seus nomes, pois trata-se sempre de nomes estrangeiros, de nomes desconhecidos.
Nós lhes pedimos para fazerem fila, para ficarem calmos, para não fazerem perguntas, e de todo modo não há intérprete.
Fichamos, fazemos longas listas, as guardamos na memória eletrônica, as deixamos dormir nos ventres dos computadores, depois, um belo dia, as acordamos: é ele, ela, eles que não queremos mais. Este homem, estas crianças e esta mulher, não queremos mais, obrigado. Aconteceu antes, acontece ainda, o mesmo protocolo, as mesmas sensações do lado dos executantes e dos deportados. Na verdade, “não se pode ter um país reduzido a um estado de peneira” (Dominique de Villepin, 12 de maio de 2005); é possível, pelo contrário, ter um país-fortaleza, um país-portaria-eletrônica, um país-que-se-faz-de-sonso, um país-carrasco-de-terno, um país-gentilmente-xenófobo, um país-campo-de-detenção. Um país que expulsa, extradita e tortura (mas discretamente); um país de bravatas e do colonialismo mal dirigido, que afogou estrangeiros no Sena um dia, que prendeu os carregadores de malas em outro, que escondeu sob sua bandeira-saiote harkis e pieds-noirs devastados pela vergonha de terem nascido.
Esse país, continuaremos a tê-lo, e estamos trabalhando nisso.
Vamos gastar cem milhões de euros para afastar os indesejáveis ano que vem.
O que é um preço justo a pagar.
Além do mais, por que eles vieram para cá, eles, essas pessoas, longe da sua língua, de sua família, de seu lugar? Mas não lhes perguntamos nem qual é a sua língua, nem como é a sua família, nem qual é o lugar que desejariam para si.
Para onde vão os indesejáveis quando desaparecem de nossa vista? A terminologia empregada diz muito: nos campos de “detenção” eles sofrem uma “expulsão”, terminologia fecal que nada esconde; não apenas o capitalismo não resolveu o problema dos seus dejetos, mas, cada vez mais rapidamente, o estatuto de dejeto inclui aquele que até ontem não o era, isso vale para as coisas e para as pessoas.
Um dos aspectos do estado de exceção, que é a regra para nós, é que nossa compatibilidade com o sistema está sujeita a uma negociação permanente para a qual devemos trabalhar sem parar, que nossa utilidade no mercado de trabalho é uma moção cronometrada.
Dizemos “vá para casa” para pessoas que a perderam, a ponto de aceitarem procurá-la do outro lado do mundo.
Dizemos “não precisamos mais de vocês” para pessoas que precisam do trabalho que lhes é recusado.
Os estrangeiros não são aqueles que vêm de longe, que são de uma outra “raça”. A raça dos indesejáveis é simplesmente aquela dos explorados, daqueles que relegamos ao campo das carências, e que confundem as fronteiras dos desejos com aquelas das miragens publicitárias. Alega-se que eles desaparecerão tal como são, que eles são o resultado de uma contingência desfavorável, de uma democracia inacabada, que são os sintomas de uma doença infantil do capitalismo global.
Mas não é nada disso.
Eles são o motor da nossa economia, os carregadores sãos da riqueza.
De qualquer maneira — você diz —, de qualquer maneira, essa história é triste e conhecida, mas essas coisas acontecem com os Outros, não conosco, com os Outros; esses Outros que não sabemos nos perguntar quem são, onde vivem. Nosso exílio interior os coloca na primeira cela, trancada todos os dias na mesma hora por falta geral de tempo e de curiosidade.
Eles estão aqui, no entanto, os outros, entre nós; eles lavaram esta manhã as vitrines do açougue da esquina, estavam sentados nesse mesmo assento do metrô pouco antes de nós, viviam em nosso apartamento antes de serem expulsos. Seu sofrimento empesteia o ar que respiramos, sua força de trabalho paga em migalhas mantém nossos salários baixos, sua solidão os impede de se organizar, sua clausura materializa silenciosamente, ao redor de nossas vidas, uma aura de prisão.
O recuo identitário ocidental, o medo da proximidade, o comunitarismo europeu e as opiniões louvadas nos jornais e na telinha, pagaremos caro por eles. Vamos conhecer a pobreza que vai despertar as piores lembranças, uma pobreza que não está ligada à crise econômica e que é bem mais destruidora; uma pobreza de possíveis que já corrói todas as bordas do político.
O estado das ruas afeta o estado de nossos interiores. Desde que nossos apartamentos se tornaram refúgios onde não devemos ousar abrigar os esquecidos da memória policial, nossa propriedade privada foi desmascarada de sua inocência aparente e se revela, enfim, como um ato de guerra.
Não queremos refugiados aqui, pois os verdadeiros refugiados somos nós, colonizados por nosso próprio país, que não é para nós senão uma terra de acolhimento: um território vigiado pelo capital global, cujas leis hostis devemos aceitar ou ir para o não lugar de suas prisões.
Há alguns anos nos pedem para que tenhamos medo várias vezes por dia, e, outras vezes, para que fiquemos aterrorizados, e ainda ousam nos falar de segurança.
Mas a segurança nunca foi assunto de milícias, a segurança se mede em face da possibilidade de ser protegido quando é preciso, é o potencial de amizade que se esconde em todo ser humano. Desde que isso foi destruído, tudo no espaço é assombrado pelo risco. Os estrangeiros estão por toda parte, é verdade, mas nós mesmos somos estrangeiros nas ruas e corredores do metrô atravessados por homens de uniforme.
Essas leis que rejeitam os desconhecidos vindos de longe lançam uma luz nova sobre a Paris terreno de jogo do Capital, sobre a “limpeza” dos quarteirões populares e a organização do turismo interno no espaço urbano. Vocês verão o que eles querem dizer quando instalam um “espaço civilizado”, ou então quando escrevem em um cartaz que “seu quarteirão se transforma”. Eles querem dizer que o colonialismo é a guerra e que os colonizados somos todos nós, nós os outros.
...é preciso que este texto termine, ele poderia continuar, mas é inútil. Nós sabemos. Ele se serve, para existir, da liberdade mais pobre que nos resta, a liberdade de expressão, que é uma ironia.
A linguagem já é um barco que afunda sob o peso de sua inofensividade. Ela não mais nos abriga; ela é sempre o estrangeiro de alguém.
Precisamos urgentemente partir para uma outra viagem, que nos coloque do lado dos indesejáveis, que questione nossas fronteiras pessoais, que nos livre do medo.
- Nós, [...] as pessoas daqui com nossas tristes experiências e nossos pavores contínuos, o medo nos encontra sem resistência; nos assustamos com o menor estalo da madeira, e quando um de nós tem medo, o outro se assusta em seguida, sem mesmo saber exatamente o porquê. Como julgar de modo são em tais condições?
.Claire Fontaine