(parágrafos iniciais)
Jogue o seu eu fora
* este excerto não contém as marcações de imagens do filme
VINTE ANOS. Vinte anos de contrarrevolução. De uma contrarrevolução preventiva. Na Itália. Em toda parte. Vinte anos dormindo sob o olhar do vigia por trás das grades. O sono dos corpos sob o toque de recolher. Vinte anos. O passado não passa. Porque a guerra segue seu curso. Circula. Cresce. Uma nova calibragem de subjetividades. Por baixo de uma nova paz superficial. Paz armada que oculta o desdobramento de uma guerra civil imperceptível.
Vinte anos. Havia o punk, o movimento de 77, autonomia, indígenas nas cidades, uma erupção, todo um contra-mundo de subjetividades que não mais queriam consumir, não mais queriam produzir, sequer queriam mais ser subjetividades. A revolução foi molecular, a contrarrevolução também.
[manifestantes contra o encontro do G8 em Gênova/ polícia]
[voz de outra mulher, falando francês, com legenda]
Teve uma vez, no primeiro dia, que cruzamos com um grupo de pacifistas. Eles estavam bloqueando a rota de fuga, depois que havíamos incendiado o banco próximo ao mar. Atrás de nós, havia o cortejo social-democrata, e à direita, uma escadaria, e subir por ela era mesmo a única saída. Era isso ou se deixar levar pela marcha que vinha de trás, confundir-se com ela.
A saída foi bloqueada pelos pacifistas da Lilliput, que começaram a nos interpelar, questionar nosso grupo de camaradas, dizendo: ei, por que vocês continuam fazendo isso? Finalmente alguém morreu, vocês querem que morra mais alguém? E nós começamos a dizer: mas de que vocês estão falando? Não é culpa nossa que morreu alguém, a culpa é da repressão, e é contra ela que devemos reagir. E vocês não fazem isso, nem com uma morte, então voltem para casa, para sua cama, digam a si mesmos que nunca mais sairão às ruas. E será aí que eles realmente venceram. Isso de fazer apenas o que dá prazer, se eles viverem mesmo de acordo com essa lógica… é uma lógica totalmente perversa, nada interessante.
Foi uma agressividade inteiramente delirante, eles estavam ali, respirando gás lacrimogêneo, bloqueando o fluxo das pessoas. E diziam: vocês não entenderam nada, vocês nos traíram, a culpa é de vocês, foram vocês que mataram Carlo Giuliani… Foi um inferno. E teve uma mulher em especial que me disse: minha querida, você sabe, eu lutava muito antes de você nascer, se estamos em uma sociedade assim, isso se deve a mim também. E eu disse: nossa, obrigada pela sociedade que você me deixou, pelo lugar que você ainda ocupa nela, esse que você ainda ocupa aos quarenta anos.
Foi bem surpreendente, sim, a agressividade é mesmo o caminho do ressentimento para aqueles que estão mais próximos da polícia ou, ao menos, que colaboram com a lógica policial. De todo modo, quem endossa o monopólio legítimo da violência policial sempre precisará da polícia, é assim que permanecerão vivos. E, assim, os pacifistas, com sua suposta pureza virginal, apenas endossam o sistema que eles mesmos dizem criticar. É algo óbvio, acredito eu.
“Outro mundo é possível”, dizem. Mas eu sou um outro mundo. Será que sou possível? Estou aqui, vivendo, roubando, cheirando cocaína, retirando-me desse filme horroroso sobre romances urbanos, inventando armas, elaborando a constelação complexa de minhas relações, construindo o Partido. “Outro mundo é possível”, dizem. Mas não queremos outro mundo, outra ordem, outra justiça: outro pesadelo lógico. Não queremos governança em escala global, seja ela justa, sustentável, ou certificada por Porto Alegre. Queremos ESTE mundo. Queremos este mundo enquanto caos. Queremos o caos de nossas vidas, o caos de nossas percepções, o caos de nossos desejos e aversões. O caos que entra em cena quando a gestão entra em colapso. O capitalismo derrotou as sociedades tradicionais porque era mais excitante do que elas, mas, agora, temos algo mais excitante do que o capitalismo: sua destruição.
Bem, esse negócio de bloco negro, é… se você vê pela mídia, pela polícia, vai parecer um grupo organizado, e seria organizado porque todo mundo se veste igual, coloca as mesmas coisas sobre o rosto, todo mundo se move junto, tudo bem organizado — é isso que dizem os comunicados oficiais da polícia. O que você percebe, no entanto, quando faz parte disso, é que é uma espécie de inteligência espontânea que se move. Você se veste de preto porque (suspiro), assim, fica mais fácil saber com quem você está andando. Até que… se todo mundo parece igual, é bem mais difícil identificar um indivíduo. É bem simples. Você tem que ser realista quanto a isso tudo. Então, você se move pela rua com uma espécie de… exército à paisana, você está com seu corpo protegido, você está com… com essa roupa preta, seu rosto escondido… [começa uma música barroca] por trás de uma máscara, ou de um lenço, o que for.
Bem, acho que é o momento… este é o momento em que, efetivamente, precisamente, não há mais cenário algum, não há um cenário planejado em termos de objetivo, percurso, confronto.
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