NOTA DA EDIÇÃO
autor: Leonardo Araujo Beserra
Colônia, de Gustavo Colombini, inaugura a frente editorial da GLAC edições que se desdobra na investigação de novos textos literários e dramatúrgicos que oferecem relevância pública por seus temas e formatos, pois experimentam a linguagem politicamente. Tanto na dramaturgia quanto em sua encenação, desenvolvidas a partir de um teatro conferencial, Colônia enfatiza uma realidade social histórica ao convidar o leitor e o espectador a acompanhar a evolução de um pensamento voltado às múltiplas designações e diversas acepções da palavra “colônia”. Para que essa variante de definições houvesse confluência, dois fatos catalisadores foram escolhidos: a condição colonial do Brasil – com muitos aspectos ainda em pleno vigor nas dinâmicas e nas mentalidades –, e a história do manicômio “Hospital” Colônia de Barbacena (MG), onde mais de 60 mil pessoas foram torturadas e mortas desde o ano de sua fundação em 1903 até meados da década 1980, com seu fechamento. Ao mesmo tempo, por meio de uma análise sintática, filológica e morfológica, a dramaturgia cria relações de colonização e discute forças propulsoras para uma ideia de descolonização, sobretudo do pensamento.
É por conta deste modus, acontecido entre a forma textual – um quase-poema – e a construção de sua especificidade narrativa – o monólogo-aula – que se opera um exercício contínuo de evadir a linguagem do processo de pensar do colonizado. Um desempenho cansativo e instigante que, conforme as referências de criação textual nos mostram, faz dessa dramaturgia uma busca infinita entre a história e a experiência. O texto e seu narrador partem do princípio violento colonial, perpassa a pedagogia em que estamos e viemos sendo submetidos pelo Império até chegar nos espasmos de enlouquecimento gerados pelos esforços ao desgarramento das entranhas invisíveis e profundas da colônia em nossos modos de falar, de agir, de sentir, de querer ser. Agamben diria que a linguagem, com seu poder falar humano, ante a comunicação, resguarda a experiência pura e, com isso, é por si destruidora da história, pois a natura a resguarda. Talvez seja por este caminho contra-histórico que Gustavo Colombini escolhe não se embrenhar em desvendar os porquês psicanalíticos das doenças contemporâneas geradas com os avanços da dominação ocidental. O autor nem mesmo procura fazer compreender quais estágios de precarização social temos alcançado por conta da financeirização de todos os aspectos da vida humana. Aparenta-se, na textura textual, que o pensamento capitalístico se encontra por todos os lados, agarrado ao espírito do pensador, em cada palavra inventada que esse ser-ninguém ousa proclamar a todo instante. O que o dramaturgo realiza ao tentar compreender: fazer o outro sentir a luta em fugir dos braços da colônia, o desespero inconsciente em procurar um exílio mas já se encontrar nele.
Na tentativa de aventar duas produções teatrais de pensamento, há distinta contundência teatral relacionada à obra do artista libanês Rabih Mroué. Em Revolução em pixels – apresentada em 2017 na cidade de São Paulo, em ocasião da Mostra Internacional de Teatro (MITsp) –, o artista também executa uma palestra-performance investigando o ato da documentação virtual, relacionando o documento à ideia da morte. Assim como em Colônia, o trabalho citado também desvela a percepção contemporânea de que, como a arte, o conhecimento não é um conjunto de objetos neutros transmitido de forma transparente, mas depende fundamentalmente dos modos de exposição utilizados por seus praticantes. Há uma convergência importante corporificada na prática da palestra-performance: assim como a exposição (seja sob a forma de apresentação, comentário ou análise no estilo acadêmico) altera a apreensão do trabalho artístico e participa do seu processo de criação. Essa mesma exposição tem uma dimensão formal (cênica e narrativa) que não pode ser ignorada. Por fim, como é a linha editorial deste selo, endossamos as relações até aqui construídas por meio de um convite reflexivo, empregado pelo apêndice desta publicação. A contribuição do crítico teatral, dramaturgo e professor de filosofia Patrick Pessoa, Ensaio de descolonização do pensamento: fragmentos críticos em torno da peça Colônia, não apenas vem aprofundar os aspectos de Colônia que a GLAC se interessou em deflagrar, mas tornar sensível o que a arte tem de mais político: a filosofia do presente. O ensaio foi publicado inicialmente no volume X, número 69 de 2018 da revista eletrônica de críticas e estudos teatrais Questão de crítica e incluído nesta publicação. Adentrando um exercício que costumamos chamar de literatura filosófica, Pessoa tece uma epistemologia da dramaturgia de Colombini, apenas não a encerra totalmente porque seu texto não se descola da experiência da representação, da atuação do falar. Daí, o crítico, a nosso ver, realiza uma etnologia da peça em consonância à filosofia da linguagem que o texto e o ator elaboram melhor, pois partem da consciência de colonização.