Prefácio — As (in)visibilidades de uma cidade
Mais ‘embaixo’, a partir dos limiares onde cessa a visibilidade, vivem os praticantes ordinários da cidade.
Michel de Certeau —
Toda sociedade opera a partir de certo “regime de visibilidade”, isto é, uma forma determinada de ver e perceber as coisas. Alguns dos elementos que garantem o funcionamento dessa sociedade podem muito bem permanecer “invisíveis”, ocultos pelo regime de visibilidade imposto. Assim, essa sociedade regula o que é visível e o que é invisível. Andar em qualquer cidade implica em jogar o jogo da visibilidade: o que se percebe e o que permanece escondido é resultado da forma como cada sujeito se relaciona com o regime de visibilidade.
Há seis décadas, um urbanista chamado Kevin Lynch escreveu um importante livro: A Imagem da cidade. Nessa obra, o autor americano descreve as formas pelas quais as pessoas circulam na cidade e experimentam o espaço a partir de imagens mentais que criam dela. Ele notou haver alguns elementos das cidades que podem fornecer bons marcos para essa construção mental àqueles que nela circulam e vivem. Ou seja, Lynch, embora não empregue esse termo, analisa os regimes de visibilidade urbanos: o que conta (e, por conseguinte, o que não conta) na hora que se lê a cidade.
Existem coisas “mais visíveis” do que outras. Existem coisas “mais invisíveis” do que outras.
Uma cidade planejada é, antes de qualquer coisa, uma cidade onde o regime de visibilidade é controlado pelo Estado e pelo capital. Esse é o caso de Belo Horizonte: cidade onde os símbolos do poder são tão visíveis que o seu brilho (artificial) ofusca a visão e produz cegueira — torna uma infinidade de componentes, construções, pessoas, em elementos invisíveis.
Portanto, não seria errado afirmar que, além da cidade visível, da ordem e do progresso, existem outras tantas, com seus habitantes, suas construções, seus ritmos, que permanecem invisíveis.
* * *
À primeira vista, o romance de China Mievile, A cidade & a cidade, parece mais um romance policial: um detetive que tenta desvendar um crime. Contudo, o livro de Mievile convida o leitor a ir mais longe. A trama se desenrola em duas cidades, Beszel e Ul Qoma, que coexistem no mesmo espaço físico. Não se trata de negação do princípio da impenetrabilidade da matéria, mas de profunda discussão sobre as fronteiras do ver e do “des-ver”. Os habitantes de cada cidade são treinados a “des-ver” os aspectos da cidade vizinha para manter a separação entre elas e, dessa maneira, sustentar a ilusão necessária de que ambas são completamente distintas. O leitor e a leitora são convidados, assim, a imaginar a vida cotidiana que se desenrola entre o ver o “des-ver”.
O estranhamento que o “des-ver” provoca no leitor e na leitora é rapidamente substituído por certa familiaridade: não é essa mesmíssima operação, de “des-ver”, que somos todos e todas constantemente convocados a realizar na nossa vida cotidiana?
Alguns elementos são mantidos invisíveis por ação deliberada de “des-ver” resultante da adesão de cada um e cada uma ao regime de visibilidade imposto.
* * *
Em um regime de visibilidade imposto, muitas coisas são “des-vistas” e, assim, permanecem invisíveis. Mas é nesse mesmo movimento, tal qual um contragolpe, que se pode escapar do regime de visibilidade dominante.
Certas coisas invisíveis podem muito bem continuar invisíveis, porque o objetivo não é somente “aparecer” para o regime de visibilidade imposto, mas destruí-lo e, assim, criar um novo. Eis mais uma das vantagens de ser invisível: jogar com a própria invisibilidade. Usar da invisibilidade para interagir com outros invisíveis. Unir os invisíveis e derrubar o regime de visibilidade imposto.
O livro que a leitora e o leitor têm agora em mãos é um desses esforços. Como escreveu Baruq, as histórias e os retratos presentes no livro aparecem na superfície visível como resultado dessa força invisível. O projeto concebido na Kasa Invisível tem sua razão de ser: a possibilidade de usar a invisibilidade para instaurar outro regime de visibilidade.
Invisíveis de todo o mundo, uni-vos (e acabemos com isso!)
Thiago Canettieri
Belo Horizonte, fevereiro de 2023