Mas você não pode enganar todas elas o tempo todo: sobre as artimanhas do cuidado
ATO I: A reciprocidade do cuidado
Acredito que uma das expressões mais repetidas nos últimos anos — pelo menos na minha percepção — seja “precisamos cuidar uns dos outros”. Isso tem sido assim, pelo menos desde o Brexit, a eleição do 45º presidente dos Estados Unidos, a marcha da extrema direita aos gritos de “os judeus não nos substituirão” ou declarações como “existem pessoas boas em ambos os lados”, os assassinatos em massa no assim chamado Camarões Anglófono por um governo despótico que fez de reféns civis desse país pacífico por mais de 36 anos, mais recentemente, com as múltiplas ações da extrema direita contra pessoas de “aparência não alemã” nas ruas de Chemnitz, ou o grupo nacionalista de direita recém-descoberto que pretendia atacar os “estrangeiros” no dia 3 de outubro — dia da reunificação alemã.
Embora a afirmação de que “precisamos cuidar uns dos outros” seja , por si só, verdadeiramente importante nestes momentos sombrios de ressurgência protofascistas ao redor do mundo — características do que Kwane Dawes chama de “a mancha branca da supremacia branca” no poema “Black suits” —, nós, de fato, precisamos cuidar uns dos outros, especialmente agora, à medida que testemunhamos os fracassos do Estado-Nação e o colapso da consciência, do percepção e da responsabilidade em relação ao nosso meio ambiente e aos nossos Mitmenschen, ou co-humanos. O ceticismo saudável, que é um pré-requisito e que fundamenta a crítica, exige que façamos perguntas sobre quem é esse “nós” e, consequentemente, os “uns dos outros” dessa sentença, e o que realmente significa “cuidar”, tendo em vista a história que deu origem aos nossos tempos. Qual é o valor do cuidado e como podemos entender a política e a socioeconomia do cuidado? Existe um cuidado incondicional ou devemos sempre pensar no cuidado em relação a algum tipo de Potlatch, algum tipo de dádiva e, portanto, em termos de obrigações e, mais ainda, na importância de retribuir o cuidado com igual valor ou idealmente maior, como sugeriu Marcel Mauss em O ensaio sobre a dádiva?
Do que estamos falando, portanto, quando falamos sobre cuidado, principalmente quando o cuidar muitas vezes implica uma assimetria, um grau, uma hierarquia entre quem cuida e quem é cuidado? O que é o cuidado em um sistema constituído e estruturado em torno do ilimitado lucro, tão somente pelo lucro? E como poderíamos imaginar o cuidado sob as garras da soberania e sempre próximo ao veneno de Staatsgewalt?
Pode parecer se tratar de uma questão de assimetrias ao assumir uma vantagem em nome do cuidado, mas, como Robert Nesta Marley disse em “Who the cap fit”: Alguns vão comer e beber com você / Depois, falarão mal de você pelas costas [Some will eat and drink with you / Then behind them su-su ‘pon you].
...
•
Quem se importa com o cuidado quando ele mesmo é o álibi?: uma lamentação em três fragmentos e sete músicas
FRAGMENTO I: Fique de boa. Corpo não é lenha. Um espaço. De consolo. Um Santuário — Na SAVVY Contemporary
As últimas semanas têm sido cansativas. De fato, os últimos anos têm sido exaustivos. Na verdade, algumas existências — principalmente para pessoas pretas e pardas em determinadas sociedades — são exigentes e desgastantes. As lutas parecem ser intermináveis. Sempre que assistimos ao noticiário nos dias de hoje, aparecem notícias de mais um homem negro executado em plena luz do dia nos Estados Unidos, ou mais um caso de feminicídio na África do Sul, mais um jornalista morto em Camarões, ou ainda, como a pandemia de covid-19 tem devastado as comunidades negras, muito mais do que todas as outras. As notícias sobre a brutalidade policial contra pessoas não-brancas — na França, no Brasil, na Índia ou em Camarões — aumentam a cada minuto e, quase sempre, nos lembram do fato de que nossa respiração — ou o mero ato de respirar, para alguns — está em um permanente estado de precariedade.
Nas últimas semanas, meses e anos, todos nós nos perguntamos o que poderia ser feito em diversos aspectos, e, além de tematizar essas injustiças — o racismo e a desumanização no trabalho que fazemos enquanto artistas, curadores e teóricos —, alguns de nós fomos às ruas em protesto, escrevemos cartas para políticos, dialogamos com as forças no poder, apoiamos os que estavam enfrentando dificuldades e tentamos uma infinidade de maneiras de nos organizar e cuidar uns dos outros. Mas até isso tem sido desgastante — para dizer o mínimo.
Há algumas semanas, em uma das manifestações do #BlackLivesMatter — contra o assassinato a sangue frio de George Floyd e contra o racismo sistêmico da polícia e de outras instituições — em frente à embaixada estadunidense em Berlim, sobrecarregado pelas adversidades e fardos do nosso tempo atual, eu me sentei, perdido em pensamentos, observando em silêncio. Resignado. Em meio aos meus pensamentos, uma jovem negra aproximou-se de mim, puxou assunto, perguntou quem eu era, o que eu fazia, de onde vinha etc. e nos demos conta de que havia muitos denominadores comuns. Após essa conversa, eu me senti animado, cuidado, visto. Foi como um recuo. Alguém parecia preocupado e sentiu vontade de compartilhar o peso que eu carregava nos ombros — apesar do fato de que ela obviamente tinha seu próprio fardo para carregar. Parecia que ela tinha vindo só para dizer “Está tudo bem. Por favor, descanse um pouco. Você tem o direito de estar cansado. Descanse e depois continue”. Em meio a esse mar de angústia, reivindicações e discordâncias, uma ilha de cuidados radicais foi construída e a força e o espírito se espalharam para seguir em frente.
Ultimamente, tenho me lembrado de uma música em particular da grande cantora e compositora sul-africana Letta Mbulu, belamente intitulada “Carry on” [Siga em frente], de seu álbum de 1996, Not yet uhuru. A música foi, é claro, composta em um contexto e época específicos, mas aquele contexto e época de 1996 — apenas dois anos depois da primeira eleição verdadeiramente democrática na África do Sul — ecoam nas histórias e vivências contemporâneas de pessoas pretas e pardas em todo o mundo. Nessa música, Letta Mbulu canta: “Elas vão contar suas histórias de mentira / Mandar seus cães para morder nossos corpos / Eles vão nos prender em suas prisões”. Esse é o presente contínuo. O passado contínuo. Há muita familiaridade nas imagens que ela evoca e em como isso se tornou o destino para muitas pessoas pretas e pardas. Então, ela resiste, e com sua resiliência prossegue: “Todos os cães deles (Dintsa tsa bona) / Vão apodrecer lá (di tla shela naheng) / Todas as mentiras deles (Mashano a bona) / Serão esquecidas / Todos os muros de suas prisões (chakane tsa bona) / Vão desmoronar”. Seu canto é uma convocação dos espíritos, dos seres superiores, para proteger e guiar. Mas o que mais me interessa é sua persistência e antevisão quando canta: “Se você não consegue mais seguir em frente / segure a mão de seu irmão / Toda vitória trará outra”. E logo no início da música, ela canta: “Existe um homem ao meu lado caminhando / Existe uma voz dentro de mim falando / Existe uma palavra que precisa ser dita / Siga em frente, siga em frente”.
...